Deverá ser de outro jeito


 “Definitivamente, eu não estou a fim de pagar essa conta: 
para mim não vale o conserto".

Ailton Krenak (2020, p. 68)

Depois de uma suspensão forçada, já estamos liberados para atualizar nossa produção acadêmica no Currículo Lattes. A “instabilidade dos sistemas”, ocorrida nos últimos dias do mês julho de 2021, foi corrigida. Verdadeiramente, apenas parcialmente. Começo a escrever agora, no dia 14 de agosto, e o acesso ao Diretório dos Grupos de Pesquisa no CNPq continua frustrado.[1] Outras atualizações vão se acumulando até o retorno à normalidade também. A sério, são inúmeros retornos à normalidade que aguardamos. A mais grave das expectativas permanece incerta. Quando a pandemia terá terminado? O prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, anunciou quatro dias de festas, já em setembro, para “celebrar a vida”. Será?

Usar máscaras na pandemia é um cuidado que muitos preferiram ignorar, favorecendo o contágio e espalhamento do vírus. O estado de emergência epidemiológica não impediu que pessoas se aglomerassem em reuniões familiares, festas e eventos. Para muitas autoridades, inclusive o presidente, preocupar-se com o vírus é uma afetação que só prejudica a economia do país. Não aguentamos interromper e nem esperar, mas é importante que se diga que não se trata de um comportamento originado em uma suposta natureza humana, a impossibilidade de parar quando ocorre “instabilidade dos sistemas”. Afinal, que tempos são esses em que não conseguimos rever prioridades e propósitos para a nossa vida diante dos riscos de uma pandemia letal?  

Retorno ao líder indígena Ailton Krenak para seguir analisando o que estamos fazendo (e o que estamos deixando de fazer) agora. Em “A máquina de fazer coisas”, um dos textos que integra o livro A vida não é útil, diz Ailton Krenak (2020, p. 61): “Existe um desejo de que essa condição de consumo da vida se estenda por tempo indeterminado, sem que a máquina de fazer coisas precise ser desligada”. Ele indaga por que não conseguimos desfazer esse loop que ata nossa presença no mundo a uma sequência interminável de utilização da própria existência. Se fomos capazes de interromper tantas coisas para ficar em casa na pandemia, pergunta se não seríamos capazes também de parar de arruinar todo o planeta, consumindo-o.

Bem, na verdade, nossa capacidade de praticar o distanciamento social foi apenas relativa. Essa tem sido a minha percepção, pelo menos, já que seus adversários, ideológicos, inclusive, foram numerosos, no Brasil e em muitos outros países. De todo modo, fica a questão: o que nos impede de parar? Por que não recuamos quando já é possível admitir que não vamos aguentar tanta produtividade – ou melhor ainda, que o planeta não vai nos aguentar “por tempo indeterminado”? O consumo do planeta e o negacionismo, climático, mas também epidemiológico, fazem parte de uma mesma realidade: A dificuldade para frear ações que cometemos recorrentemente e que parecem dominar nossas vidas, mesmo diante dos seus riscos.

“O capitalismo tem um poder tão grande de cooptação que qualquer porcaria que anuncia vira imediatamente uma mania”, observa Ailton Krenak (ibidem). O capitalismo não é sobrenatural, é claro. É histórico e social. Nosso engajamento, a cooptação alcançada, forma-se a partir de uma lógica sistêmica, local e mundial, que o capitalismo, mais do que qualquer outra sociedade, pode exercer cotidianamente sobre nós. Na verdade, exatamente porque a cooptação nos faz atuar para a manutenção do próprio capitalismo. Ontologicamente, a manutenção do capitalismo é uma escalada de produção e consumo “por tempo indeterminado”. Mas o capitalismo não tem inteligência própria, ele não pensa sequer na sua sobrevivência. Pelo contrário, no limite, ele é autodestrutivo.

Precisamos entender o que está acontecendo, sobre a “instabilidade dos sistemas” e saber travar seus mecanismos – deixando de lubrificá-lo assiduamente. Ocorre-me agora a imagem icônica de Charles Chaplin, em Tempos Modernos, quando, “acidentalmente”, se insere nas engrenagens fabris. Há uma ambivalência na cena criada por Chaplin. Tema de todo o filme, ele é forçosamente tragado pelo processo de modernização capitalista. Mas é também um sonhador esperançoso de outros tempos, na sua imaginação libertária. A mesma cena pode, portanto, ser vista também como outro desejo, que o humano se interponha entre os mecanismos de cooptação, descontinuando a cadeia de acontecimentos que nos condiciona a operar para um poder desumanizador.

O capitalismo não exerce um poder a partir de “fora” senão a partir do nosso próprio engajamento nele. Não significa dizer que inexiste uma dominação. Em uma linguagem direta, existem as classes dominantes e as classes dominadas. Por isso podemos dizer sobre a existência de um poder. Mas a dominação capitalista é também cooperativa. Precisamos ajudar, participando do próprio poder das classes dominantes – a cooptação. De algum modo, a conscientização que nos fala Paulo Freire é uma primeira reação contra o estado de coisas que permite a opressão. Tenho a impressão que luta de classes é hoje uma categoria que serve para pensar também nosso destino no planeta.  Não dá mais para cooperar com o capitalismo, “não vale o conserto”.

Se ainda não estamos em uma situação-limite, acredita Ailton Krenak (ibidem, p. 58), existe a necessidade de um “ajuste de foco” diante do que estamos passando. Se vamos ou não “apertar o botão da nossa autoextinção”. Se não sairmos do capitalismo, saímos do planeta. Concepção de sociedade no capitalismo avançado é também concepção de vida no planeta. São lutas que me parecem agora inseparáveis. Não há sustentabilidade capitalista, nem luta de classes com futuridade que não formule sobre a urgência das questões ambientais. Não existirá uma sociedade emancipada, em um nome, socialista, se o planeta não nos quiser mais por aqui. “A Terra pode nos desligar tirando nosso ar, não precisa nem fazer barulho” (ibidem, p. 60).

Estamos entregues à produtividade capitalista, por isso esperamos que tudo volte ao “normal” para atualizarmos nossa vida, depois da sua suspensão pela pandemia. Diz Ailton Krenak (ibidem, p. 113), em outro texto do livro, “A vida não é útil”, que dá nome ao próprio livro: “O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência”.  Durante a pandemia, muitos de nós estamos trabalhando mais. Diante das demandas “por tempo indeterminado” que existem nos empregos, encontramos mais tempo para ocupação em alguma atividade se estamos de trabalho remoto. Em casa, não estamos consumindo tempo em meios de transporte, por exemplo. Então, nosso tempo, aparentemente, está mais útil para o trabalho.

Estamos consumindo nossa existência enquanto somos úteis para mais produtividade. Para Ailton Krenak (ibidem, p. 101/102), a escola também é útil: “O que chamam de educação é, na verdade, uma ofensa à liberdade de pensamento, é tomar o ser humano que acabou de chegar aqui, chapá-lo de ideias e soltá-lo para destruir o mundo”. Será preciso revisar toda a nossa presença no planeta se quisermos ficar. Em outro texto do livro, “Sonhos para adiar o fim do mundo”, diz Ailton Krenak: “Nós podemos habitar este planeta, mas deverá ser de outro jeito”. A espera pelo retorno à normalidade existente antes da pandemia, talvez precisássemos ver como um estado de morbidez.

Pensar em mudança social nos obriga a bem mais do que lutar contra uma “economia” – ou pelo menos como nos habituamos a nos referir à economia, como um campo muito específico da realidade social. Capitalismo é muito mais do que isso. Para Félix Guattari, “A ordem capitalista é projetada na realidade do mundo e na realidade psíquica. Ela incide nos esquemas de conduta, de ação, de gestos, de pensamento, de sentido, de sentimento, de afeto etc” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 51). Com efeito, “O que faz a força da subjetividade capitalística é que ela se produz tanto em nível dos opressores quanto dos oprimidos” (idem, p. 53).

O problema é nosso também, não de uma entidade transcendente, “o capitalismo”. Nós somos o capitalismo. Não no sentido de que compartilhamos todos os mesmos interesses de classe. O que estou afirmando é que sem a nossa resistência integral ao modo de produção capitalista, nosso fechamento ainda será com a sociedade burguesa. Não há luta contra as condições materiais do capitalismo que não seja também uma luta contra os modos de subjetivação do capital. É isso ou não será mais nada, nem planeta para habitar existirá, apenas a retórica intelectual, política ou acadêmica que se desmancha no ar, sem qualquer fidelidade à palavra radical, transformação.

REFERÊNCIAS

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 7ª ed. rev. Petrópolis: Vozes, 2005.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

*

Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

PUBLICAÇÕES ANTERIORES

A conclusão faltante 

Educar com a mídia na pandemia?

Estarei preparando a tua chegada

Qual o currículo da pandemia?

A pedagogia da autonomia e o desenvolvimento do protagonismo docente e discente

Maria Firmina dos Reis

Paulo Freire depois de junho de 2013

Em tempos de distanciamento social, à procura de Paulo Freire

Milton Ribeiro, novo ministro da guerra cultural bolsonarista

Facilitador/a x coordenador/a de debates: Qual o lugar do/a professor/a durante a pandemia daCovid-19?

Esse vírus está discriminando a humanidade

Educação em emergência epidemiológica: Um olhar através de três conceitos de Paulo Freire

Para ser um ser no mundo

Excesso de positividade

Em louvor da sombra

Qual o vírus mental do ministro Weintraub? Como se proteger dele?



[1] Foi reestabelecido também dias depois.




Comentários

  1. 👏👏👏 Ou paramos agora, ou o mundo é que para!!!! Acredito junto contigo que "rever prioridades e propósitos para a nossa vida" em uma "reforma de pensamento", como nos diz Morin, me parece o único caminho: uma outra sociedade!!!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Kiriku e a Feiticeira

Carregadoras de Sonhos

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho