Carolina Maria de Jesus, uma vida filosófica

Lendo Paulo Freire, mais do que nunca: Uma biografia filosófica[1], me ocorreu de pensar se Carolina Maria de Jesus não viveu uma “vida filosófica” também, do mesmo modo que Walter Kohan (2019, p. 73) propõe para Paulo Freire. A contrapelo das conhecidas tentativas de situar a filosofia em Paulo Freire a partir das influências que recebeu das correntes de pensamento que o precederam, Walter Kohan faz um giro e propõe outro olhar, que não é propriamente o de identificar a conexão conceitual entre autores.  Walter Kohan nos faz ver como Paulo Freire se associa a outras duas tradições, particularmente voltadas para o problema da imanência da vida na filosofia. A primeira delas é a representada por Marx, sobretudo, nas Teses sobre Feuerbach. A segunda está no Foucault tardio de A coragem da verdade.

A questão, então, não é o da conformidade teórica com esses autores, mas como neles existia uma preocupação com a própria vida – a vida como problema filosófico – que Paulo Freire se ocupou ao seu modo. Vou destacar o Foucault, que é também a abordagem que Walter Kohan privilegiou um pouco mais na sua elaboração. No Foucault aqui explorado, Sócrates e os filósofos cínicos inauguraram uma tradição europeia, a da “vida filosófica”. Consiste em um trabalho sobre a própria existência – uma “estética da existência” – na forma da ética e do heroísmo (ibidem, 67), um “estilo de vida” (ibidem, p. 69) exemplificador para a vida pública na pólis. Walter Kohan (ibidem, p. 71) observa, então, sobre o caráter educador da “vida filosófica”.

Paulo Freire aí se encontra, na tradição de uma “vida filosoficamente educadora”, (ibidem, p. 73), defende Walter Kohan. Para demonstrar sua posição, faz uma analogia com a vida de Sócrates. Ambos se viam educando cidadãos através de diálogos que serviam para provocar um exame da existência. Walter Kohan enxerga em Paulo Freire a mesma pastoral que guiava a conduta de Sócrates na pólis. Suas arguições pretendiam ser benéficas para os seus ouvintes e assim se viam realizando uma missão. Chama a atenção, inclusive, o relato sobre a visita que Sócrates faz ao Oráculo de Delfos e o sentido profético e comprometedor que ele atribuiu à sua vida a partir do episódio. Diz Walter Kohan (ibidem, p. 75), “Sócrates quer que todos vivam sua vida filosófica”.

No lugar de prosseguir com a demonstração da adequação da filosofia de Paulo Freire à vida filosófica de Sócrates, como faz Walter Kohan, vou fazer um desvio. Vou me dirigir à Carolina Maria de Jesus. Assim como tenho feito com Maria Firmina dos Reis nas minhas aulas, sobretudo da graduação, introduzi a leitura da Carolina Maria de Jesus nos meus cursos em razão da relevância pedagógica, mas também política, que atribuo à presença de autoras negras na bibliografia e, mais ainda, em um curso de Pedagogia. Então, com a leitura da Carolina Maria de Jesus e conhecendo alguns aspectos da sua biografia, ao ler sobre a “vida filosófica” que nos fala Walter Kohan, comecei a me perguntar se, além do Paulo Freire, Carolina Maria de Jesus não poderia ser incluída na mesma tradição. Vejamos.

Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, interior de Minas Gerais, em 1914. Sua morte acontece na cidade de São Paulo, em 1977. Sua vida foi uma dolorosa e heroica jornada, como mulher, mãe solo, negra e escritora que foi traduzida para inúmeros idiomas com a publicação de Quarto de despejo, em 1960. Em Carolina: Uma biografia, Tom Farias nos apresenta a mais completa biografia de Carolina Maria de Jesus até agora publicada. Nas primeiras páginas, o autor faz um retrato social e histórico da cidade de Sacramento e das terras ocupadas pela família de Carolina, mostrando o contexto original do seu nascimento, marcado pelo legado da escravidão na região, a precariedade das suas condições e sem muitas perspectivas.

O analfabetismo era uma situação compartilhada na família de Carolina Maria de Jesus.  No entanto, Tom Farias (2017, p. 8), na apresentação da obra, faz uma observação notável sobre sua pesquisa a respeito de Carolina, “por desvendar nela a força criadora e criativa de uma mulher determinada a viver pelo seu ideal de vida”. Seu ideal de vida, perseguido obstinadamente: Ser uma escritora, uma poetisa preta. Da cidade de Sacramento, deu partida a uma andarilhagem, morando em muitas cidades, para trabalhar, para viver, sempre em uma situação muito desfavorável, como empegada doméstica ou catadora de papel. Quando publicou Quarto de Despejo, morava na favela do Canindé, à margem do rio Tietê, na cidade de São Paulo. Tinha três filhos.

Por decisão de uma patroa da sua mãe, entre os 6 e 7 anos, Carolina Maria de Jesus é matriculada em uma escola e estuda por dois anos incompletos. É alfabetizada, ainda que com todo o débito do breve período de escolarização. Terá sido uma oportunidade que fará dela uma leitora e escritora. Durante anos, mostra seus escritos em redações de jornais e consegue até ser retratada e publicar algo uma ou outra vez. Até que, em 1958, um jovem repórter, Audálio Dantas, vai à favela do Canindé cobrir uma pauta e lá conhece Carolina, que mostra seus cadernos literários. Audálio vê, entre as produções apresentadas, a escrita de um de diário. Combina com ela seguir escrevendo o “diário de uma favelada”, subtítulo de Quarto de despejo.

O que vem a seguir, a história é conhecida: Carolina Maria de Jesus transforma-se em um sucesso editorial, inclusive traduzida para vários outros idiomas. Com o dinheiro que ganha com seu livro compra uma casa, no bairro de Santana, e sai da favela. Compra também um sítio, sua última residência, em Parelheiros, e vai morar lá quando a situação da sua vida volta a piorar, já que não consegue prosseguir publicando com o mesmo sucesso nem com a mesma atenção da mídia. Carolina já está esquecida antes da sua morte, e foi preciso muito tempo para que voltasse a ser lembrada como hoje ocorre, quando toda a sua obra possui enorme interesse literário e educador. Sua própria vida adquiriu um significado existencial, como mulher negra e escritora, que é vista como exemplar e inspiradora também.[2]

Mas qual a “vida filosófica” de Carolina Maria de Jesus? Como situá-la no mesmo enredo socrático que Walter Kohan fez para Paulo Freire? Primeiro, retorno à infância de Carolina Maria de Jesus (2014, p.73/74) para contar uma história curiosa, que ela narra em Diário de Bitita, livro que só foi publicado após a sua morte, primeiramente na França, em 1982, e somente depois no Brasil, em 1986. Em uma ocasião, à noite, ao retornar do trabalho, a mãe de Carolina encontra a filha inconsciente. Levaram-na a um “médico das almas”, Eurípedes Barsanulfo. A avó de Carolina havia dado para ela bebida alcóolica para adormecer. Resolvido o mistério da inconsciência de Carolina, Eurípedes Barsanulfo faz uma predição: “Ela vai adorar tudo que é belo! A tua filha é poetisa!”.

Muitas vezes, lendo as narrativas biográficas da Carolina Maria de Jesus, eu me pergunto se sua lembrança é apenas factual ou inventada também. Pessoalmente, encontro nesses impasses, sobre a autenticidade ou não de algumas passagens dos seus diários, um dos aspectos estéticos da sua obra e de enorme força literária. Na verdade, é a criação total da sua vida, tal como foi simultaneamente vivida, mas ainda inventada, que faz também da literatura de Carolina Maria de Jesus algo artisticamente notável. Tom Farias (2017, p. 42) situa que ela tinha entre três ou quatro anos quando teria ocorrido esse encontro com Eurípedes Barsanulfo, fundador do Grupo Espírita Esperança e Caridade. Desde os seus primeiros anos da infância, uma profecia teria revelado sobre sua presença definitiva no mundo: ser poetisa.

Então, assim como Sócrates, Carolina Maria de Jesus também foi predita por uma autoridade religiosa. A analogia não termina aqui, há outra igualmente curiosa, agora ainda mais direta com Sócrates. Em um conto, Carolina Maria de Jesus (2018, p. 61) nos fala do seu avô como alguém que chegou a ser descrito como um virtual “Sócrates africano”. Inclusive é o título do conto. Conto ou relato? Mais uma vez não sabemos se trata-se de uma história total ou parcialmente inventada a partir das suas recordações infantis. É um escrito pungente sobre a consciência que Carolina Maria de Jesus possui das consequências da escravidão e do racismo, e também sobre a importância libertadora que atribuía à educação.

“A minha mãe era a única que poderia herdar o cetro intelectual do vovô, mas a minha mãe não aprendeu a ler. Enquanto o português predominou no Brasil, o negro foi tolhido. As escolas não aceitavam pretos. Mas o Rui Barbosa dizia que, agindo assim, implantariam o preconceito racial no Brasil, que um país com preconceito é um país de raças medíocres”, escreveu Carolina Maria de Jesus (ibidem, p. 62). Seu avô, o Sr. Benedito, era alguém que era procurado para resenhas que duravam horas, ela conta. Por isso o seguinte comentário que recebeu de um dos seus conhecidos: “Foi uma pena não educar este homem. Se ele soubesse ler, seria o homem. Que preto inteligente. Se este homem soubesse ler poderia ser o nosso Sócrates africano”.

Carolina Maria de Jesus aproveitou uma fenda na sua vida, que foi frequentar a escola por dois anos incompletos. Ela estudou no Colégio Allan Kardec, fundado exatamente pelo “médico das almas”, Eurípedes Barsanulfo. E tanto quanto a “vida filosófica de Sócrates”, também imaginava que outros indivíduos, os negros, sobretudo, pudessem viver como ela. No caso, a mesma vida educada pela escola que ela apenas vislumbrou, mas o bastante para herdar o “cetro intelectual” do “Sócrates africano”, que a sua mãe não pôde assumir. A vida educadora de Carolina Maria de Jesus é uma ética para tantas estudantes, negras como ela, que pretendem seguir sua vida heroica.

REFERÊNCIAS

FARIAS, Tom. Carolina: Uma biografia. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. São Paulo: SESI-SP editora, 2014.

JESUS, Carolina Maria de. O Sócrates africano. In: Meu sonho é escrever... Contos inéditos e outros escritos. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018. p. 60-70.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo, Ática, 2014.

KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: Uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio, 2019. 

*

Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

PUBLICAÇÕES ANTERIORES

Deverá ser de outro jeito

A conclusão faltante

Educar com a mídia na pandemia?

Estarei preparando a tua chegada

Qual o currículo da pandemia?

A pedagogia da autonomia e o desenvolvimento do protagonismo docente e discente

Maria Firmina dos Reis

Paulo Freire depois de junho de 2013

Em tempos de distanciamento social, à procura de Paulo Freire

Milton Ribeiro, novo ministro da guerra cultural bolsonarista

Facilitador/a x coordenador/a de debates: Qual o lugar do/a professor/a durante pandemia da Covid-19?

Esse vírus está discriminando a humanidade

Educação em emergência epidemiológica: Um olhar através de três conceitos de Paulo Freire

Para ser um ser no mundo

Excesso de positividade

Em louvor da sombra

Qual o vírus mental do ministro Weintraub? Como se proteger dele?

 


[1] Livro que retomei à leitura quando fui convidado para participar do evento “Educar em tempos de pandemia?”, como um dos entrevistadores do Professor Walter Kohan, no Ciclo de Debates Virtuais organizado pelo Centro de Estudos Avançados (CEA-UFRRJ), realizado em 28 de abril de 2021.

[2] Tenho uma orientanda na graduação, Vanessa Paulo de Barros, que está fazendo a sua monografia construindo uma narrativa em que se identifica com os caminhos de superação que encontra na história de vida da Carolina Maria de Jesus.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Kiriku e a Feiticeira

Carregadoras de Sonhos

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho