A estética no pensamento de Paulo Freire


Qual a importância da estética no pensamento educacional de Paulo Freire? [1]

Apesar de ser uma questão pouco lembrada quando falamos de Paulo Freire, a estética está completamente integrada ao seu pensamento educacional. Em Pedagogia da autonomia (1996), por exemplo, Paulo Freire refere-se à prática de ensinar-aprender como uma experiência total, composta de diferentes elementos, como a política, a pedagogia, a ética e a estética também.  Em Cartas à Guiné-Bissau (1977), Paulo Freire diz que o educador é um político e um artista. Ainda como jovem professor, nos primeiros anos da década de 1940, conta Paulo Freire, ele já se dedicava, em seus estudos sobre gramática, ao que ele chamava de momento estético da linguagem. O fato é que a questão da estética e a concepção da educação como arte estão presentes na sua obra porque para Paulo Freire, educar de modo crítico é um ato de criação, problema que ele amadureceu ao longo da trajetória como educador e autor em inúmeras publicações.

Uma obra particularmente interessante onde a questão da estética na educação é tratada por Paulo Freire é Medo e ousadia (1987), publicada em coautoria com o educador norte-americano Ira Shor. Eu destacaria duas passagens do diálogo entre eles. A primeira é quando Paulo Freire diz que conhecer é algo de belo. E por quê? Conhecer é desvendar um objeto e o desvendamento dá “vida” a esse objeto. Paulo Freire completa, afirmando que enquanto estudamos, realizamos uma tarefa artística, que é animar o nosso objeto. Ou seja, torná-lo “vivo”, no sentido de fazermos vir à luz a sua existência. A segunda passagem que destaco é aquela em que ele diz que, ao entrarmos em sala de aula, iniciamos um “jogo estético”. Eu daria como exemplo, o uniforme escolar. Há uma prescrição sobre o seu uso, mas muitas vezes ele é customizado, recriado, pelos estudantes. Portanto, entre a prática da normalização escolar e o modo de expressão dos estudantes, há um desafio que acontece também no campo da estética.

 

Como a questão estética se articula com as questões éticas e políticas na pedagogia freireana?

Como disse anteriormente, Paulo Freire refere-se à estética várias vezes em sua obra. Quando observamos essas passagens nos seus escritos, percebemos que se trata de uma discussão que ele elabora, relacionando-a quase sempre aos campos da política e da ética. Em Cartas à Guiné-Bissau, Paulo Freire diz que o educador é simultaneamente um político e um artista. Pedagogia da autonomia é um pequeno manual sobre saberes necessários à prática educativa, subtítulo da obra. O conteúdo está dividido em vários tópicos prescritivos e um deles chama-se “Ensinar exige estética e ética”. São dois exemplos de como a questão da estética aparece, em Paulo Freire, associada aos campos da política e da ética. Está claro que o significado que ele atribuía à estética na educação não se constituía independente de outras condições.

Política é um campo muito caro ao pensamento educativo do Paulo Freire. Quando ele fala sobre conscientização, mudança e transformação, refere-se, naturalmente, ao campo da disputa política, do confronto. A educação freireana é criação de uma alternativa às condições socialmente existentes. Criar como tarefa artística da educação é refazer a nossa presença no mundo, não idealisticamente, mas no campo decisivo da disputa política pelos rumos da sociedade. Por isso, Paulo Freire parece sempre ter evitado falar de estética como uma ponta solta do seu pensamento educacional. Há uma história sobre Sócrates que é a seguinte: Como servidor da cidade, ele recebeu a incumbência trazer de volta à Atenas um proscrito, que a seguir seria condenado à morte. Contudo, Sócrates recusou a missão. Sua compreensão era de que a ordem recebida não correspondia ao seu dever. A legitimidade estava do lado do dever e não da ordem recebida. Para Paulo Freire, a estética deve ser considerada ao lado da ética e não a partir de um suposto valor autônomo que deveria possuir.

 

Enquanto estudioso da área da educação e, em especial, enquanto educador que forma educadores, qual a sua opinião sobre a relevância da proposta estético-pedagógica freireana para se pensar a realidade educacional brasileira?

É uma pergunta que me permite recordar dos meus anos como professor na educação básica, especialmente lecionando na escola pública, na rede municipal do Rio de Janeiro, entre 1993 e 2006. Pensar a realidade educacional brasileira passa necessariamente por conhecer a realidade da educação nas grandes redes públicas, onde se encontram as classes populares e os principais desafios da educação brasileira. Foi no chão da escola que o meu interesse pela questão da estética se desenvolveu inicialmente. Observando o gosto musical dos meus alunos e das minhas alunas, suas práticas culturais, seus hábitos de consumo, como se vestiam, suas linguagens, como se comunicavam e como suas presenças desestabilizam frequentemente as normas propostas pela autoridade escolar, passei a pensar no campo da estética como uma forma de problematizar a educação pública e popular. É o “jogo estético” que falou Paulo Freire.

Então, sobre a questão da estética no pensamento de Paulo Freire, vejo, sobretudo, como uma forma de olhar muito atual sobre os desafios da educação brasileira, uma vez que estamos falando da classe popular e da sua cultura, que só pode ser apropriadamente entendida, em uma linguagem freireana, a partir das suas situações existenciais. O indivíduo que chamamos de educando é alguém que possui um pertencimento cultural e se expressa conforme as suas referências, socialmente adquiridas. Não há como reconhecer integralmente a presença das classes populares nas escolas sem compreender a experiência estética como elemento que constitui a existência cotidiana das suas crianças e jovens. Paulo Freire, ao discutir cultura popular e conscientização na sua obra, fez uma contribuição que é também sobre a estética na educação e ela é muito oportuna de ser lembrada agora, diante das nossas dificuldades em formular e praticar uma educação de interesse da maioria popular que frequenta a educação pública.

Finalizaria dizendo que, nas escolas, há um campo de disputa que é estético. Um campo de disputa que é político e ético, mas estético também. E o estético está à flor-da-pele, mais do que qualquer outra condição.

#PauloFreire

#Estética

#NatutrezaArtísticaDaEducação

 



[1] Texto originalmente escrito a partir do roteiro de uma pequena entrevista que seria concedida on-line ao Prof. Dr. Ronildo Alves do Santos como conteúdo gravado para utilização na disciplina de Filosofia de Educação do curso de Pedagogia da UNIVESP. A entrevista ocorreu no dia 30 de julho de 2024.

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