A IA diante do universo temático da nossa época

 



E agora, o que dizer sobre a utilização da IA generativa na educação? Há uma intensa propaganda que prega a IA generativa como uma tecnologia digital disruptiva capaz de transformar qualitativamente as práticas pedagógicas. No entanto, há também quem desconfie do seu uso, imaginando que o sentido caracteristicamente humano da educação está ameaçado, correndo o risco do próprio desaparecimento da atividade autêntica do ensino. Apesar do impacto que significou a notícia da IA generativa disponível em modelos como o ChatGPT, não se trata realmente de um entusiasmo original, tampouco de uma inquietação desconhecida.

Desde o nosso ingresso na cibercultura somos desafiados a concluir sobre o que pensamos em relação às tecnologias digitais e o seu lugar na educação. Uma vez que estamos reunidos para uma conversa sobre a IA Paulo Freire[1], parece oportuno recordar algumas das suas ideias para aprofundar o diálogo. Gostaria de me deter especialmente em duas questões desenvolvidas por Paulo Freire em sua obra. A primeira delas, é sobre a necessária imersão que a educação deve realizar a respeito do seu próprio tempo. E a segunda, é sobre a relação entre informação, comunicação e formação na produção do conhecimento crítico.

Em uma seção do seu mais importante livro, Pedagogia do oprimido (1970), Paulo Freire propõe um conceito investigativo que é o de “universo temático da época”. No capítulo 3, quando discute sobre a definição do conteúdo programático da educação popular (“do povo”, ele diz), Paulo Freire considera que deve partir da sua situação existencial comum. O universo temático é constituído por unidades que são os seus respectivos “temas geradores”. Então, poderíamos considerar toda a problemática que cerca a criação da IA generativa como tema gerador que conduz à definição do que constitui o universo temático da nossa época.

A educação é libertadora quando seu processo de conscientização vincula práticas transformadoras das condições em que nos encontramos oprimidos pelo poder. A captação dos temas geradores depende da atenção que dedicamos as questões que definem os dilemas do nosso tempo, percebidos nas situações existenciais das quais participamos. Nossa presença no mundo é sempre desafiada pelas condições em que somos ou não capazes de exercer a liberdade de criação do nosso existir. No caso da IA, somos desafiados, portanto, a sua compreensão, investigando sua razão de ser, em uma época em que as tecnologias digitais modelam nossa vida diária e a própria concepção de futuro.

Em referência ao seu lugar na educação, poderíamos nos aproximar também da questão da IA indagando sobre o seu interesse para a formação.

Inicio com um relato pessoal. Até o lançamento do ChatGPT o assunto IA na educação me despertava, no máximo, uma remota curiosidade. No entanto, desde 2023, a partir de uma série de notícias, de artigos publicados e conteúdo disponível nas redes sociais, procurei me informar melhor. Agora, em 2024, passei a usar, primeiramente, o próprio ChatGPT, além do Copilot, uma funcionalidade baseada em IA integrada ao navegador da Microsoft. Mais recentemente, comecei a usar o NotebookLM, uma ferramenta desenvolvida pelo Google. Também passei a testar o LanguageTool para uma rápida verificação gramatical e de estilo de escrita.

Integrei a IA generativa às minhas atividades de estudo e pesquisa, mas com resultados ainda desiguais, avalio. Alcanço aproveitamentos relevantes quando uso o ChatGPT, mas nem sempre. O fato é que algumas vezes é decepcionante. Tenho o fácil entendimento que preciso conferir com cuidado tudo que consigo obter de informação usando o ChatGPT, ao mesmo tempo que reconheço seu emprego como uma assistência que planejo explorar ainda mais. Meu interesse pelo NotebookLM creio que aumentará muito. Acredito que assim como outras tecnologias digitais, a IA generativa será crescentemente agregada ao nosso trabalho, de docência e pesquisa.

Feito o meu relato pessoal, retorno ao Paulo Freire para pensar a formação em tempos de IA generativa. Em Cartas a Cristina (1994), quando Paulo Freire rememora algumas práticas formativas que desenvolveu no Serviço Social da Indústria, o SESI, instituição que ingressa, no Recife, em 1947, ele diz: “toda informação traz em si a possibilidade de seu alongamento em formação”. Uma frase que me parece servir muito bem para a nossa discussão. Para a formação acontecer, é preciso que a informação não se apresente como um comunicado, mas de modo comunicante. É uma condição para existir comunicação e consequente produção de conhecimento sobre o que foi comunicado.

Produzir conhecimento é uma atividade criadora e não receptora apenas. O conhecimento é revelador ainda das condições em que acontece, se seguirmos a perspectiva de Paulo Freire. Ele diz, também em Cartas a Cristina: “é o conhecimento crítico que implica tanto o domínio da técnica quanto a reflexão política em torno de/a favor de quem, de que, contra quem, contra que se acham estes ou aqueles procedimentos técnicos”. As tecnologias digitais, entre elas, a IA generativa, não devem ser vistas apenas como objetos da nossa avaliação prática, se possuem ou não um valor pedagógico na sua aceitação. É preciso conhecer a razão de ser delas, qual a política de suas existências.

Como tema gerador para nos situarmos diante do universo temático da época, passo necessário a uma educação emancipadora, a questão da IA deve ser vista, entendo, a partir do legado de Paulo Freire, não como um objeto sem história, sem origem explicativa da sua própria existência em nossas vidas. As tecnologias digitais não existem como dádivas, em um mundo em quem somos assediados continuamente pela imposição do desempenho, pela necessidade exaustiva de produção e demonstração de resultados. Não existe uma catástrofe por vir, como resultado de uma vida insensata. O desastre já existe.

 

 #PauloFreire

#InteligênciaArtificial

#Formação

 

[1] Texto que escrevi previamente como preparo para a minha participação na roda de conversa Paulo Freire tem a sua IA generativa, com a presença da Profa. Edméa Santos (UFRRJ), do Prof. Mariano Pimentel (UNIRIO) e da Profa. Beth Tavares (Cátedra Latino-Americana Paulo Freire). Evento online do 5º Encontro Internacional Docência e Cibercultura. Data: 15 de agosto de 2024. Para assistir ao vídeo gravado da conversa: https://www.youtube.com/live/Z2mRLyVVvLU?si=RQDD6g2njrNo-qRY

 


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